O ponto de ruptura
Iniciam nosso projecto sobre o capitalismo em Nairobi, perguntando: Será que já não existe um salário decente?
Eu sou o Gacheke, em 2017 conheci o meu amigo Antony Adoyo, hoje organizador comunitário e coordenador de investigação de acção participativa com o Grupo de Trabalho do Centro de Justiça Social (SJCWG), uma voz colectiva para o movimento de justiça social de base no Quénia. Durante esse tempo, Adoyo preparava-se para se formar na Universidade de Nairobi com um diploma de Licenciatura em Economia. Era um jovem com menos de 30 anos, que tinha o grande sonho e visão de trabalhar com o Banco Central do Quénia. Esta era a carreira de sonho de muito/a(s) estudantes da sua turma que estudavam finanças e economia. Todo/a(s) ele/a(s) esperavam que, após terminarem a universidade, conseguissem um emprego bem remunerado. Ao trocarmos notas um dia, o meu camarada-a-ser António perguntou-me se eu o poderia ajudar a arranjar um emprego numa grande organização de direitos humanos, visto que ele estava prestes a formar-se. Fiquei muito surpreendido por um licenciado da Universidade de Nairobi, a primeira universidade da República do Quénia, estar à procura de emprego através de mim, um organizador comunitário.
Quando Adoyo se formou em 2017, convidou-me a mim e a outros camaradas para a sua cerimónia de graduação na casa dos seus pais. Era uma residência de dois quartos em Dandora, um dos bairros pobres próximo de Mathare. Celebrámos a sua formatura com uma humilde refeição de chapatis e guisado de carne. Mais tarde o seu pai fez uma prece para que o seu filho trouxesse esperança e salvamento à sua família da pobreza, e alívio ao desespero nas lutas pela subsistência em Dandora. Com isto apercebi-me de como pais comuns tinham investido bastante na educação dos seus filhos como parte da luta pela libertação social da pobreza. Para muito/a(s) licenciado/a(s), libertar os seus pais da pobreza ou mesmo ajudar a pagar os empréstimos para pagamento das propinas não será possível. É uma questão de justiça social pela qual muito/a(s) jovens universitário/a(s) estão a lutar. Estes portadores de certificados universitários de medicina, engenharia, economia, biotecnologia e enfermagem recordam-se da dor do esforço que foi concluir a sua educação universitária apenas para permanecer desempregados durante os próximos cinco anos ou mais. Estão a viver a crise do capitalismo no dia-a-dia. Uma estudante que se licenciou em sociologia disse-me que deixou de se candidatar a empregos anunciados no jornal por recear que um dia encontrasse um vendedor de amendoins a vender os amendoins embrulhados com cópias dos seus certificados académicos ecurriculum vitae. Já tinha enviado centenas de cartas de candidatura a empregos em Nairobi e suspeitava que estas tivessem sido deitadas fora e depois recolhidas e utilizadas por vendedores de amendoins.
Eu sou a Lena e já tive vários trabalhos durante as minhas férias universitárias. Trabalhei como distribuidora de flores, entregando enormes ramos de flores no valor de milhares de xelins nos abastados subúrbios de Nairobi, apenas para receber 500 xelins quenianos ($5 USD) por um dia inteiro de trabalho. Depois de gastar o dinheiro na deslocação e jantar, não sobrava nada. Como empregada de mesa num dos cafés de luxo de Nairobi, recebia 60 Ksh ($0,60 USD) por hora, trabalhava seis dias por semana durante longas horas, a vender comida, que não podia eu mesma comprar, aos clientes do café, e gerando vendas no valor de centenas de milhares de xelins para a empresa. Muitas das empregadas de mesa e lavadoras de pratos eram licenciadas que trabalhavam nestas condições de escravatura há mais de seis anos, mas não podem sair porque não há garantias de que encontrem outro emprego. E sabem que existem muito/a(s) licenciado/a(s) desesperado/a(s) e queniano/a(s) desempregado/a(s) que estariam disposto/a(s) a aceitar o emprego por metade do salário.
Mama Victor, outro membro do nosso grupo de trabalho do centro de justiça social e coordenadora da Rede de Mães das Vítimas e Sobreviventes (para vítimas e sobreviventes da brutalidade policial e das execuções extrajudiciais), trabalhou como empregada doméstica ocasional durante seis anos em Eastleigh, um bairro da classe trabalhadora predominantemente Somali que faz fronteira com Mathare. Muitas das mulheres empregadas domésticas vêm de Mathare, Kiamaiko, Kariobangi, Korogocho, Kiambiu e outras zonas pobres. Elas vêm para Eastleigh todos os dias à procura de trabalho, e o desespero e a fome fazem-nas aceitar tão pouco como 100 Ksh ($1 USD) para lavar à mão uma grande pilha de roupa que pode demorar mais de três horas a terminar. Ou também as faz aceitar uma grande bacia cheia de pratos por 2,000 a 3,000 Ksh ($0,20 a 0,50 USD). Em média, cada mulher recebe 200 Ksh ($1,87 USD) pelo trabalho de lavandaria. A competição do/a(s) migrantes de Karamojong e Gisu de Uganda torna a luta pela sobrevivência ainda mais difícil. Devido às condições de vida, os/as migrantes ugandeses aceitam ser pago/a(s) entre 2.000-3.000 Ksh ($20-30 USD) por mês para serem empregado/a(s) doméstico/a(s), um trabalho que normalmente custa 5.000 Ksh ($50 USD). Já viver com 5.000 Ksh por mês é um salário de fome, porque alugar uma cabana ou um quarto individual custa 3.000 Ksh por mês e os 2.000 Ksh restantes têm de alimentar e vestir uma família. Além disso, as condições em que as mulheres trabalham são horríveis. Elas enfrentam assédio sexual, violação e outras formas de agressão física por parte do/a(s) seus/suas empregadore/a(s). A pobreza é violência. É uma luta por uma vida digna em condições impossíveis.
Quando nós, Gacheke e Lena, falámos com outros dos nossos camaradas em luta, ouvimos falar de muitas outras situações difíceis. Na Área Industrial, a zona industrial de Nairobi, trabalhadore/a(s), na sua maioria mulheres, que trabalham nas empresas hortícolas que exportam flores ou legumes, estão sujeito/a(s) a condições desumanas. As empresas têm um sistema biométrico para fazer o check-in. O/a(s) trabalhadore/a(s) têm de se apresentar às 9.20h e sair às 16.29h, utilizando impressões digitais como identificação. Qualquer atraso, mesmo de um minuto, significa que um montante arbitrário será deduzido dos salários que são 663 Ksh por dia numa das empresas. As horas extraordinárias não são compensadas, e quando é época alta no Reino Unido, têm de trabalhar mais horas em condições de frio extremo. A indústria hortícola no Quénia gerou 153 mil milhões de Ksh em 2018, no entanto os/as empregado/a(s) destas empresas trabalham em congeladores durante todo o dia sem roupa de protecção. Se um/a dele/a(s) ficar doente, são despedido/a(s) em vez de a empresa incorrer na despesa de tratar o/a seu/sua empregado/a. Os/as patrõe/a(s) da empresa abrem contas para os/as trabalhadore/a(s) sem consentimento e têm acesso aos números PIN secretos, podendo levantar montantes das contas bancárias dos empregados à vontade. A Constituição do Quénia de 2010 e a Lei das Relações Laborais de 2007 dão a todo/a(s) os/as trabalhadore/a(s) o direito de aderir a um sindicato, mas as empresas supervisionam os movimentos dos/das seus/suas trabalhadore/a(s) e qualquer indício de associação a um sindicato torna-os/as vulneráveis ao despedimento. Os sindicatos, por outro lado, pouco fazem para melhorar o bem-estar dos seus membros e, em vez disso, exploram os/as trabalhadore/a(s) através das taxas de afiliação. São uma extensão das corporações gananciosas, e os/as trabalhadore/a(s) são sugado/a(s) pelas empresas para as quais trabalham, e são sugado/a(s) pelos sindicatos, pelo/a(s) seus/suas senhorio/a(s) e os pelos governo através de impostos.
As raízes históricas da crise do mercado de trabalho neoliberal podem ser traçadas até ao início dos anos 80, quando o FMI e o Banco Mundial impuseram políticas de ajustamento estrutural a países do Sul global como o Quénia. Durante este período, o governo neocolonial foi forçado a parar os investimentos nos cuidados de saúde, educação, habitação e agricultura, de modo a proporcionar aos capitalistas um ambiente favorável à exploração: para obter super lucros; uma vez que os serviços básicos como os cuidados de saúde, educação e habitação foram mercantilizados e privatizados. Tudo isto se agravou durante o confinamento devido a pandemia de COVID-19.
Continuamos a lutar contra a repressão estatal, a violência e o legado desumanizador de uma economia capitalista neoliberal, cuja ideologia orientadora é o ódio aos pobres e a ganância pelo lucro. A nossa amizade com Antony apresentou-nos muitos licenciados da Universidade de Nairobi, e iniciámos uma sessão de discussão sobre a luta pela justiça social e pelos direitos humanos no Quénia. Esta sessão levou à formação de uma rede de estudantes universitários que conduzem educação política em povoações informais como parte da criação de consciência política sobre a crise do capitalismo neoliberal. Através da luta das mulheres no movimento social, organizamo-nos contra a exploração do trabalho doméstico e a violência sexual e de género. A Biblioteca Ukombozi (Biblioteca da Libertação) liga os centros de justiça social e os estudantes universitários para consolidar os esforços dos estudantes que lutam contra a repressão estatal, a brutalidade policial nas universidades e o desemprego maciço. É a ligação das nossas lutas entre estudantes e trabalhadore/a(s) informais, que nos ajudará a forjar o caminho para a educação política e a fomentar um movimento de justiça social na nossa luta pela libertação da indignidade da vida no capitalismo.